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Súmula de uma gênese

  • 12 de Julho de 1997

No princípio Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra era solidão e caos, e as trevas cobriam o abismo; mas sobre as águas adejava o sopro de Deus... Então o Senhor formou o homem com o pó da terra e lhe insuflou nas narinas um hálito de vida, e com isso tornou-se o homem uma alma vivente.
Livro do Gênesìs

Há sete anos, um grupo de médicos e paramédicos, sob o comando da Dra. Bela Zausner, se reúne diariamente no hospital Santo Amaro, gentilmente cedido pelo Dr. José Silveira, para celebrar esse milagre. Era a Clínica Gênese, que seria responsável pelo nascimento de algumas centenas de crianças, que de outra forma não teriam vindo ao mundo e felicidade de igual número de casais sem filhos.
Instalado em uma salinha de 12 m2, o grupo foi se desvencilhando de outros compromissos e crescendo, ano após ano. Chegou o momento que a clínica atingiu sua maioridade e resolveu criar asas, conquistar seu espaço próprio. Não faltaram ofertas de edifícios altos, luxuosos e com nomes complicados, mas sem caráter, nem calor. O grupo já possuía um belo terreno na Alamedas das Algarobas, mas que havia sido condenado pelos corretores e burocratas.
Lembrando velhas estória infantis, em que cegonhas fazem seus ninhos nas chaminés de casas residenciais, este riscador, que é também amigo da Dra. Bela, resolveu mediar os legítimos anseios do grupo com as normas municipais. Foram consultas e tramitações as mais diversas, pelos labirintos dos cartórios e da SUCOM: segunda via da escritura de partilha, reintegração de posse e rerratificação do lote que havia emagrecido e sido invadido de tanto esperar, quitação de IPTUs perdidos, aprovação de AOPs, perícias, obtenção de alvará de construção e outras exigências protocolares. E tudo sob as investidas recorrentes de corretores “muy amigos” oferecendo pisos acarpetados, porteiros de casaca, elevador com voz fantasma e antena coletiva, localizados nos Suarez mais chiques da Rótula da Rodoviária.
Seu projeto foi literalmente uma obra de bioengenharia, para compatibilização dos gens do SEM, GASUP, GERAE, TAC, e Vigilância Sanitária e de toda complexa carga genética de Bela. Foram implantados cinco projetos devidamente fecundados, dos quais vingou apenas um, com paternidade reconhecida pelos padrinhos e autoridades competentes. Mas sua gestação foi complicada, tubária, agravada pelos antojos e desejos da gestante, genial e geniosa.
A Dra. Bela não satisfeita da sua condição de mãe e provedora, resolveu dar uma de parteira aparadora, auto-parteira. Foram mil reuniões com credores, instaladores, decoradores, prestamistas, marmoristas, seguranças, auditores, estucadores, anestesistas, cambistas e fornecedores que resultaram em demissões coletivas, revisões de projetos, reajustes orçamentários, defenestrações, anulação de contratos, separações, cancelamento de pedidos, troca de fornecedores, notificações, brigas, intrigas e buchichos. Para segurar a adrenalina foram necessários overdoses sucessivas de Lexotan, o que evitou algumas ameaças de aborto e enfarte. Dava dó ver a Bela atormentada. Mas felizmente a paciente reagiu bem à medicação.
Como acontece nesses casos, a gestante só foi entender, muito tarde, que parir um edifício é muito mais complicado e doloroso do que um bebê. E que teria sido muito melhor voltar a sua poltrona, apertar o cinto, relaxar e deixar o comando do Boeing à tripulação. A futura mamãe deve apenas curtir a gravidez e fazer a força no momento indicado, e que força!
Mas o anúncio do nascimento próximo fez mudar o humor da paciente, com a realização de animados chás de cozinha, reuniões de comadres no segundo andar, troca de mimos e viagens a São Paulo para a compra do enxoval multicolorido do bebê, fazendo esquecer as agruras da gravidez de auto-risco. Como acontece com toda recém-parida, jurou nunca mais transar, para não se “embarazar” novamente. Passado o puerpério, porém, já está pensando aumentar a prole, criar uma maternidade, um hospital talvez!
Alguns visitantes desatentos não entenderão o edifício, já que ele é convexo e côncavo ao mesmo tempo. Arredondado por fora, como um ventre prenhe, como um seio. Côncavo e aconchegante por dentro, com seu pátio interno, como um útero, um ovário ou, em sua falta, uma proveta. Este é o espaço mais importante do edifício, o limbo, a última esperança para um punhado de mulheres à beira de um ataque de nervos.
Ali, elas curtem cheias de confiança os rituais de exames que antecedem a inseminação ou à implantação do embrião salvador. Alcançada a graça, voltam àquele pátio em romaria, a cada ano, para depositar o santinho do pimpolho no quadro dos milagres. Para os homens, estranhos no ninho, aquele gineceu é o inferno. Ali, esperam pacientes, sob os olhares indiscretos e complacentes do mulherio indócil, o chamado para a cópula solitária, com minutos contados, na sala dos espelhos. É a suprema humilhação, o escárnio público pelo mal cumprimento de suas obrigações maritais. A falta de tesão!
Por tudo isto, este espaço mereceu um tratamento especial. Em seu centro, está uma palmeira tropical que esconde uma víbora traiçoeira, cenário bíblico e monumento à fertilidade, à graça e ao veneno feminino. Recobre o pátio uma abóbada de policarbonato, que se abre gentilmente para captar uma nuvem perdida e a lua em sua ronda noturna. A lua, que move marés, conduz a seiva ao olho dos coqueiros e jequitibás mais altos, pode também fazer o milagre de drenar os hormônios mais renitentes e provocar um novo cio, uma ereção matinal, uma ovulação temporã.
Consultórios, laboratórios, centro cirúrgico e salas de recuperação distribuem-se à sua volta, em dois pavimentos. No último andar, fica a área de lazer, que ninguém é de ferro, a cantina e o salão de estudo e confraternização abrindo-se para o terraço do happy hour. Mas falem baixo, pois pode haver uma Bela adormecida na alcova anexa, sob os olhares atentos de alguma fera à espreita.
Esta é a Clínica Gênese, um edifício sem mordomo de casaca, nem elevador com voz fantasma, mas meio mágico, curvo e recôncavo como um útero, onde toda manhã um Espírito penetra com as brisas da Viração, invade seu interior e laboratórios estéreis e sopra nas provetas da Fada Madrinha um hálito de vida e amor, porque na Gênese todo dia é dia de criação.

SSA: A Tarde, 12/07/97

PS – Discurso proferido pelo autor do projeto na inauguração da Clínica Gênesis


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