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incidente no Anjo Azul

  • 26 de Julho de 2020

No último dia 18, Luiz Mott publicou no jornal A Tarde uma deliciosa crônica sobre a Salvador dos anos 50 e 60. Ele ainda morava em S. Paulo, mas de ouvir contar resgatou a Rua Chile com algumas licenças poéticas, como a Dama de Roxo atendendo na Sloper e a Gruta de Lurdes abrindo à noite. Mas o mais interessante é sua descrição da boite Anjo Azul, inspirada no famoso cabaré de Lola, em Berlim, revivida por Marlene Dietrich, e aqui frequentada, supostamente, por Mangabeira e Dom Timóteo. Vou complementar sua crônica com mais uma história.

Fui pela primeira vez ao Anjo, em 1965, em companhia de Sílvio e Lia Robatto. Era verdadeiramente uma “cave”. Se na cidade era só repressão, lá dentro era só liberdade, ou mesmo transgressão. O Anjo Azul logo se transformou num point de existencialistas, modernistas, boiolas, liberadas e cabeludos, que escandalizava os conservadores da paróquia. Já tínhamos, naquela época, um capitão famoso responsável por zelar pelos bons costumes. Era um oficial que realizava serviços (à paisana) para o governador Juraci Magalhães.  

Ainda me lembro daquela primeira visita. Ao invés dos dolentes boleros do Tabaris, em que os casais dançavam queixo-no-queixo, ali, o som altíssimo tocava um rock n’roll provocador da Jovem Guarda: “Quero que vá tudo para o  inferno”.  Vi pela primeira vez num salão social uma dança tribal em roda, em que ninguém-era-de-ninguém. Lia tirou as sandálias e começou a levitar para delírio geral.

Há alguns julhos anteriores, o capitão fora escalado para aplicar um “corretivo” no Anjo Azul. Chegou à noite com três robustos milicianos à boite, que estava fechada, mas que tocava musica lá dentro. Bateu na porta e um dos seus donos, Pedreira, reconhecendo o capitão, explicou, educadamente, que a boite estava fechada ao público, porque um grupo havia alugado o local para uma comemoração. O capitão não gostou da ser confundido com povinho, ele era “otoridade”, e disse que poderia invadir e fechar aquela merda definitivamente. Diante da ameaça, o bom samaritano optou pela conciliação. Pediu um momento, foi lá dentro e voltou dizendo que iria abrir uma exceção e eles teriam uma mesa, mas que procurassem não interferir na festa.

O grupo sentou, mas logo reclamou da demora em ser atendido. O garçom veio e eles pediram umas ‘”bias”. Quando a cerveja chegou reclamaram que estava quente e disseram, em voz alta, que não estavam gostando nada daquela espelunca escura, com uns veados falando uma língua que eles não entendiam. Pedreira foi até a mesa e disse que tinha o prazer de os receber, mas, por gentileza, falassem mais baixo. O capitão não tolerava desacato à autoridade e o derrubou sobre uma mesa. Seus auxiliares quebraram uma cadeira e com seus pés começaram a bater em todo mundo. A porrada se generalizou. Na porta, o Capitão apitou e apareceu um camburão que levou todos para uma delegacia. No dia seguinte os jornais estampavam: “Famílias de diplomatas do Consulado Americano espancadas e presas quando festejavam o Independence Day, degustando xixi de anjo”


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