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As cidades históricas do Nordeste

  • 23 de Março de 1973

Os Ministérios da Educação e Cultura, e do Planejamento acabam de instituir um grupo de trabalho que deverá elaborar em um prazo de sessenta dias o plano de restauração de nove centros históricos do Nordeste, ou sejam, São Luis e Alcântara no Maranhão, Olinda e Iguarassu em Pernambuco, Penedo e Marechal Deodoro em Alagoas, São Cristóvão e Laranjeiras em Sergipe e Cachoeira neste Estado. As notícias, nem sempre claras dos jornais, falam ainda em Salvador e Porto Seguro. Muitas destas cidades são tombadas pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e já contam com planos diretores de preservação e desenvolvimento, como Olinda e Alcântara, ou em fase de elaboração, como São Luis, Cachoeira e Porto Seguro. Para a realização destes planos o IPHAN tem buscado a cooperação de órgãos internacionais, como a UNESCO e OEA, e federais e estaduais. Todavia, a execução dos planos de preservação e desenvolvimento integrados daquelas cidades requer recursos de tal monta e exige a intervenção em setores tão variados da vida daquelas cidades que seria ingênuo pensar que um único órgão, ou ministério, pudesse enfrentar o problema sozinho.
Os franceses, que são pioneiros em estudos de restauração de centros históricos, sentiram desde logo que o problema só poderia ser resolvido com o concurso de vários ministérios. A Lei Malraux, de 1962, sobre a preservação de setores urbanos e paisagísticos, criou uma comissão nacional para resolver a questão, constituída por representantes dos Ministérios de Assuntos Culturais. Obras Públicas, Interior, Finanças, Planejamento e Turismo, além de seis membros escolhidos dentre as pessoas de notória competência no assunto. Entre nós, o problema não, poderia ter outro encaminhamento. Inspirada naquela legislação, e na italiana, apresentamos ao II Encontro de Governadores para a Defesa do Patrimônio uma comunicação sobre a necessidade de uma legislação complementar ao decreto-lei n. 25 que criou o IPHAN, visando dar a aqueles órgãos os instrumentos necessários a enfrentar o problema das cidades-monumentos. Naquela contribuição não só propúnhamos a formação de uma comissão interministerial nos moldes da lei francesa, como a cooperação entre o poder público, que através de seus vários ministérios criaria a infraestrutura urbana e turística necessária, e o poder privado que financiado em condições especiais, faria a reforma das condições habitacionais dos imóveis que ocupam.
Entre a restauração arquitetônica e urbana não existe uma contradição, mas vai uma grande distância. As complexas implicações socioeconômicas, ecológicas, e circulatórias, os problemas de poluição atmosférica, visual e sonora dos ambientes urbanos e demais fatores dão à restauração urbana o caráter de uma operação dinâmica e viva em oposição à restauração arqueológica estática. Nessa escala, a restauração arquitetônica, no seu conceito contemporâneo, isto é, de consolidação das estruturas do passado e adaptação aos usos sociais de cada época, ocupa uma posição intermediária entre aquelas duas posições extremas. O que importa que seja observado é que as adaptações à nossa época tenham caráter reversível, isto porque as restaurações que fazemos hoje são, por força dos costumes e usos, diversas das que se fizeram no passado e se farão no futuro, e os monumentos ou cidades não devem ser marcados indelevelmente por cada geração, sob pena de se descaracterizarem progressivamente.
A restauração de centros urbanos, segundo a conceituação mais atual, deve visar o bem-estar daqueles que os habitam e visitam e, naturalmente, a transmissão para as gerações futuras de seu acervo artístico. Não se deve, portanto, confundir reanimação urbana com a simples restauração iconográfica de espaços urbanos para consumo turístico, embora o turismo possa, devidamente orientado, constituir uma função para cidades que por força de mudanças econômicas ou políticas perderam, por assim dizer, seus fatores de localização.
Qual seria, porém, o melhor meio de conservar essas cidades? A história tem mostrado que a descaracterização do espaço urbano tradicional está mais relacionada com fatores socioeconômicos do que com a ação de agentes físicos do meio. As cidades que entre nós sofreram grandes transformações socioeconômicas pouco conservaram sua ambiência primitiva. Isto é válido tanto para aquelas que experimentaram um rápido desenvolvimento econômico como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, quanto para as que sofreram um empobrecimento progressivo como Alcântara e Porto Seguro, cidades despovoadas e parcialmente destruídas que apresentam atualmente mais interesse paisagístico e histórico do que mesmo urbano. É forçoso reconhecer que foi a quase inexistência de transformações sociais decorrentes da estagnação econômicas que permitiu a Ouro Preto, São Cristóvão e São Luís chegarem até nós com uma integridade surpreendente.
Com a melhoria e criação de novas estradas, as cidades históricas do Nordeste não tardarão a ser invadidas por torrentes turísticas do Sul. Será o despertar destas belas adormecidas? O turismo imporá profundas e rápidas transformações sociais e urbanas a estas cidades, transformações que poderão, como já vimos, desfigurá-las definitivamente. Para isto não ocorra, é necessário que a preservação e o desenvolvimento dessas cidades sejam prévia e cuidadosamente planejados, como começa a ser feito. A discussão deste tema me fez recordar a observação aguda do arquiteto Erick Schineider, quando em nossa companhia visitava as cidades e engenhos abandonados do Recôncavo: “É preciso evitar que o turismo não venha a ser uma nova forma de monocultura para esta região”

SSA: A Tarde, 23/03/1973

PS – Este artigo foi escrito por ocasião da criação do Programa das Cidades Históricas do Nordeste.


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